“PROJETO PARA UM OUTRO PAÍS” DO ECONOMISTA JOÃO SAYAD
Entre 1994 e maio deste ano -portanto antes e depois das reformas constitucionais-, o governo (nos níveis federal, estadual e municipal) gastou menos do que arrecadou em impostos, quando não se consideram os juros. A tabela nesta página mostra os dados oficiais.
O número com sinal negativo é um superávit, ou seja, nesses casos os impostos são maiores do que as despesas. Os dados são apresentados como porcentagem do Produto Interno Bruto. Foram calculados e publicados pelo Banco Central do Brasil e apresentados sem nenhuma elaboração adicional.
Podemos ver que o déficit primário ou é muito pequeno ou é negativo, isto é, superávit. O governo gasta o que arrecada, vive dentro de suas possibilidades.
A segunda coluna mostra que as despesas com juros foram elevadas, assumindo proporção quase sempre superior a 3% do PIB.
A terceira coluna mostra os dados do déficit operacional, que é a soma dos dois déficits: o primário e das despesas com juros.
O governo não tem déficit de origem fiscal -isto é, decorrente de subsídios, obras públicas, gastos sociais ou Previdência. Os impostos arrecadados são mais do que suficientes para cobrir essas despesas.
O problema são as despesas de juros fixadas pelo Banco Central. Por que são tão altas?
O discurso oficial alega que os juros são altos porque o déficit público é alto.
Se todas as despesas, inclusive a da Previdência, são menores do que o total de receitas, se não há déficit primário elevado, não se pode dizer que os juros são altos porque o déficit é alto.
O argumento dos neoliberais transforma o déficit público em Deus transcendente e inexplicável: o déficit é alto porque os juros são altos; e os juros são altos porque o déficit é alto; e o déficit é alto porque os juros são altos…
A explicação real é mais simples: o déficit é causado pela política monetária, e não fiscal. Foi o Banco Central que “inventou” uma dívida para emitir títulos em nome de um cliente, o Tesouro Nacional, que não queria nem precisava da dívida e, mais tarde, é chamado a pagar os juros da dívida que não queria contrair.
A dívida brasileira subiu de US$ 64 bilhões para US$ 300 bilhões no final de 1998 porque os juros eram altos para incentivar a entrada de dólares no período e manter a taxa cambial baixa, provocando desindustrialização e desemprego.
Conservadores lutam pela independência do Banco Central. Deveriam lutar pela independência do Tesouro Nacional.
Essa é a evidência contábil oficial de que a estratégia adotada pelo governo brasileiro -fazer as reformas constitucionais e privatizar para reduzir o déficit público- foi um equívoco.
Não precisava ter gasto o capital político decorrente do sucesso do Plano Real com alianças políticas para aprovar reformas constitucionais que possibilitassem a demissão de funcionários públicos, redução de benefícios de aposentadoria, tributação de aposentados e venda das estatais. Os dados do Banco Central mostram que o governo sempre teve dinheiro para pagar tudo isso.
Não vale a pena tocar nesse assunto, agora que a dívida já cresceu, as indústrias já quebraram, os empregos já foram destruídos e a Constituição já foi reformada.
Não pude assistir com colegas e alunos à palestra do professor Celso Furtado na Faculdade de Economia e Administração da USP, onde foi justamente homenageado. O título da palestra, “Projeto para um Outro País”, é carregado de sentidos.
Celso Furtado, intérprete consagrado do país, deve ter falado sobre projetos e alternativas que mudariam o futuro do Brasil, livrando-nos dos pesadelos que nos ameaçam, tornando-o mais justo e menos cruel.
Fiquei matutando, desanimado, se a palestra não teria sido feita realmente para outro país, que não estivesse asfixiado por frases feitas e ideologias, onde se pudessem discutir com realismo novas propostas. Aqui, os dados da tabela mostram que não adianta argumentar, é uma conversa de surdos.
“Outro país” talvez tenha outro sentido: a estratégia da política do governo nos últimos anos -cortar gastos, demitir, privatizar, não fazer gastos sociais por causa do déficit público- não é consistente com os dados do Brasil. É uma boa estratégia para um país que tenha tido um sistema de segurança social eficaz e caro. É boa para “outro” país, com “outros” dados das contas públicas.
Poderia ser ainda uma outra coisa: projeto para “outro” país é o que o presidente fala quando dá entrevistas em outros países.
*artigo publicado na coluna Opinião Econômica da edição desta segunda, 19, do jornal Folha de S. Paulo
João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de “Que País é Este?” (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail – jsayad@ibm.net
fonte: AFUBESP