Entrevista: Por que a Covid-19 pode ser uma doença associada ao trabalho
A relação entre a covid-19 e as diversas atividades profissionais exercidas presencialmente na pandemia, como a atividade bancária, é objeto de estudo do projeto “COVID-19 como uma doença relacionada ao trabalho”, promovida pela Associação de Saúde Ambiental e Sustentabilidade (ASAS). O projeto inclui a realização de uma pesquisa com trabalhadores formais e informais de vários segmentos, que vai analisar e dar visibilidade às condições de trabalho enfrentadas na pandemia.
A reportagem é do Sindibancários Espírito Santo.
Enquanto não há vacina ou tratamento definitivo para a covid-19, o isolamento social continua sendo a maneira mais eficaz de prevenir a doença, que já infectou mais de 6,4 milhões de pessoas no Brasil e levou mais de 174 mil a óbito. Apesar disso, muitos trabalhadores não têm a opção de ficar em casa, sobretudo após o afrouxamento das normas de isolamento e a retomada das atividades em quase todos os setores da economia. O projeto pretende jogar luz sobre essa realidade e produzir subsídios para que os trabalhadores possam ter seus direitos assegurados em relação à nova doença.
Para falar um pouco mais sobre o tema, entrevistamos uma das profissionais envolvidas, a médica Maria Maeno (foto). Pesquisadora da área de Saúde do Trabalhador, Maeno é formada pela Faculdade de Medicina da USP, com doutorado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública/USP. Ela integra um time de sete profissionais renomados responsáveis pela pesquisa.
Na entrevista, Maeno desmonta os argumentos do setor patronal para negar sua responsabilidade com o quadro de contaminação dos trabalhadores; fala sobre o dever do poder público, em especial sobre as garantias previdenciárias que deveriam ser reconhecidas aos adoecidos pela covid-19, além de dar detalhes sobre o projeto. Confira a entrevista na íntegra e participe da pesquisa. Lembre-se, bancários e bancárias podem responder a um formulário específico. Acesse o link abaixo para participar!
Um dos objetivos do projeto é dar visibilidade às atividades de trabalho como fonte de contágio da covid-19. Por que é difícil reconhecer a covid-19 como uma doença relacionada ao trabalho? Quais os principais entraves?
Existe conhecimento científico amplo de que os locais e as atividades de trabalho, em geral, são fontes de disseminação do vírus, seja em relação a quem trabalha em um local permanente ou não, como é o caso dos entregadores, motoristas de ônibus, de táxi, etc. Então se você não tiver controle dos locais de trabalho e das atividades de trabalho, se a vigilância de saúde não for estendida considerando essas condições de trabalho, ela será uma vigilância parcial.
Há uma resistência de determinados setores em reconhecer que os locais, as condições e a organização do trabalho podem fazer mal à saúde das pessoas. Ter um surto de covid na sua empresa significa que o sistema interno de prevenção não funcionou, e o setor patronal não se interessa por esse reconhecimento, pelo contrário. E eles usam dois argumentos, basicamente. Um deles é o fato de que a covid é uma doença comunitária e, portanto, pode ser adquirida tanto no trabalho quanto fora dele, o que é uma verdade. A questão é que, aliando o fato de que o trabalho é um lugar onde se tem aglomeração e contato entre pessoas, nós temos que considerar que aquele local, do ponto de vista social, é um local de disseminação. Então ele deve ser considerado, a priori, como o local onde se adquiriu a doença, no caso das pessoas que fazem o trabalho presencial. É justamente pelo fato de a doença ter um caráter pandêmico e comunitário que nós não podemos descartar o local de trabalho como um local de disseminação.
Um segundo argumento que eles utilizam é que a pandemia se trata de uma endemia –o que é uma falácia. Do ponto de vista epidemiológico, nós estamos tendo uma epidemia em nível mundial. Endemia é quando uma doença está de uma certa forma controlada e ela existe durante o ano inteiro, ou sazonalmente, em uma determinada região. A epidemia sobe rapidamente no mundo inteiro e agora ela continua num platô, então não se trata de uma endemia. Esse argumento, portanto, também não é válido.
O que muda para o trabalhador, quando contaminado, ter reconhecido o nexo causal da doença com o seu local de trabalho?
Para os trabalhadores do setor formal, é muito importante que esse reconhecimento seja efetivo pelo INSS, porque vários direitos adicionais são garantidos ao trabalhador acometido por doença relacionada ao trabalho, que equivale ao acidente de trabalho. Nesse caso levamos em conta também a doença ou acidente que envolve o trajeto de trabalho, que também é reconhecido como sendo do trabalho, conforme a Lei 8.213.
Um desses direitos é a não necessidade de cumprimento de carência para começar a receber o auxílio-doença. Se o trabalhador tem 8 meses de carteira assinada, é contaminado e é obrigado a ficar um mês e meio afastado do trabalho, ele terá direito a receber o auxílio-doença por acidente de trabalho a partir do 16º dia de afastamento, se tiver esse vínculo reconhecido. Sem esse reconhecimento ele não poderá receber o auxílio-doença porque não cumpriu os doze meses de carência que o INSS exige, ou seja, ele não tem o tempo de contribuição necessário. Essa regra vale tanto para novos segurados como para trabalhadores que já contribuíram por anos mas que em algum momento perderam a condição de segurado.
O segundo ponto é que, no caso de afastamento por mais de 15 dias, o trabalhador com doença reconhecida como sendo do trabalho tem direito a estabilidade de um ano após o retorno ao trabalho. Isso é importante porque nós sabemos que as demissões estão ocorrendo e muitos trabalhadores pós-covid estão sendo demitidos.
A terceira questão é que o empregador é obrigado a manter o recolhimento do Fundo de Garantia durante o período de afastamento do trabalhador no caso de acidente de trabalho, o que não acontece quando os afastamentos não são reconhecidos como tal.
A quarta é o direito ao auxílio-acidente, que é um pecúlio que o trabalhador acidentado ou adoecido por causa do trabalho recebe se tiver uma diminuição da sua capacidade de trabalho ao final do tratamento. Se um trabalhador com covid permanecer com sequelas após ter feito o tratamento e receber alta, como alguma deficiência respiratória, cansaço extremo, problema de coração ou outro, ele tem direito a esse auxílio-acidente.
Todo mundo se lembra do auxílio-acidente quando se trata de um acidente de trabalho típico. Por exemplo, quando a pessoa precisa ter a perna amputada. Aí ela tem visivelmente uma diminuição da sua capacidade de trabalho. Mas existem doenças que também deixam sequelas, muitas vezes não tão visíveis, como a covid. Muitas sequelas têm que ser estudadas ainda e outras já estão estabelecidas como existentes.
Finalmente, no caso de falecimento, a pensão que o acidentado do trabalho deixa também é maior. Esses são os direitos previdenciários que vejo como principais.
Atualmente, existe algum respaldo legal para que o trabalhador que estiver em trabalho presencial, ou seja, sem cumprir o isolamento, possa emitir a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) em caso de contaminação pela covid-19?
A lei diz que todo empregador deve emitir a CAT em caso de acidente ou doença relacionada ao trabalho. Quando é um acidente típico, quando a pessoa cai no local de trabalho, ou ela estava indo pra casa e o ônibus sofreu um acidente, existe uma maior facilidade de comprovação de que a lesão decorreu de um acidente de trabalho. Só que com a covid não. É como acontece com muitas doenças que acometem os bancários, como a depressão e a síndrome do pânico. As empresas dizem que isso foi decorrente de outras questões da vida da pessoa, e por isso não emitem CAT. Se você perguntar para o banco “vocês emitem CAT sempre que houver acidente ou doença ou trabalho?”, eles dizem que sim, que cumprem a lei. Mas o que é caso de emissão para eles é diferente do que é para a gente. Para nós, todos os trabalhadores que estão em trabalho presencial e tiveram ou têm covid deveriam ter esse reconhecimento por parte da empresa e, principalmente, por parte da sociedade, por meio do INSS, que é uma instituição pública. Então do ponto de vista social é essencial que haja esse reconhecimento.
Vale lembrar que se a empresa, mesmo sendo obrigada a emitir CAT, não o fizer, outros podem fazê-lo, como os sindicatos, as autoridades sanitárias, o médico assistente…isso está na lei. Então é importante que essa mensagem seja divulgada.
Quantas categorias a pesquisa pretende abarcar? Há um número definido?
Nossa proposta é abranger todas as categorias que trabalharam ou trabalham presencialmente na pandemia; o máximo que conseguirmos alcançar.
Como será a divulgação dos resultados da pesquisa?
A medida que formos obtendo informações relevantes, vamos publicar relatórios que serão disponibilizados no nosso site. Já temos um grupo de assessoria de comunicação que inclui as organizações parceiras, que poderão trabalhar com esse conteúdo. O que a gente espera é uma comunicação em rede, não centralizada, para que essas informações se espalhem de forma capilar.
O projeto propõe a produção de um dossiê sobre a covid e o trabalho. O que mais poderá ser encontrado no dossiê?
A gente pretende dar rosto, identidade para as pessoas que tiveram covid. Já temos alguns conteúdos que contam um pouco do trabalho e a vida dessas pessoas. É importante dar face, dar identidade, porque elas não são apenas números. São pessoas que obtiveram covid trabalhando e muitas que deixaram suas famílias. Será impossível fazer isso com 100%, mas vamos compartilhar uma parte dessas memórias. Também entrevistaremos pessoas que responderam ao questionário, a fim de aprofundar qualitativamente algumas questões que não tenham ficado claras. Ao longo do projeto, faremos um documentário contando as histórias dos trabalhadores que atuaram presencialmente e em que condições. Todas essas informações serão compartilhadas no dossiê.
O projeto conta com a parceria de sindicatos, como o Sindibancários/ES, e outras organizações de classe. Qual a importância dessas parcerias?
Nós quisemos envolver os sindicatos, particularmente, porque eles dão dimensão coletiva para as demandas dos trabalhadores, dão respostas coletivas. Isso é uma forma de organização muito importante, sobretudo nesse momento em que o mundo do trabalho sofre uma mudança grande, de pulverização de locais de trabalho, de mudança de vínculos empregatícios. Queríamos fazer uma parceria com uma entidade que consideramos ser fundamental na nossa sociedade para que os trabalhadores não percam os seus direitos, mas para que ampliem.
Achamos também que os sindicatos conseguem chegar aos trabalhadores, para que eles se sintam motivados a responder, entendendo que assim podem obter um benefício coletivo. Além disso, na pesquisa também perguntamos sobre as demandas do trabalhador em decorrência da covid. Se pudermos dar resposta a alguma questão, certamente os sindicatos poderão ajudar. Então é uma parceria de verdade, não só na coleta do material, mas também na construção de propostas coletivas.
O projeto tem um prazo para ser finalizado? Até quando os bancários poderão responder à pesquisa?
É importante que o trabalhador responda imediatamente o formulário, mas que volte a responder em outro momento, porque as condições de trabalho podem se alterar. Hoje ele pode não ter covid, mas pode se contaminar daqui a dois meses, por exemplo. Em relação ao prazo do projeto, gira em torno de um ano, mas isso não é definitivo, vai depender do andamento. E sabemos que é importante dar visibilidade às condições de trabalho sempre, então vamos avaliar a duração.