LEIA ARTIGO DE JOÃO SAYAD: “O REI ESTÁ NU”
JOÃO SAYAD
*Artigo publicado na coluna Opinião Econômica (página 2, caderno Dinheiro) da edição de 7 de agosto do jornal Folha de São Paulo
Os psicólogos Asch e Milgram realizaram a seguinte experiência: apresentaram a um grupo de pessoas três linhas de comprimento diferente e perguntaram qual era a maior. Ninguém errou.
Depois, fizeram a mesma pergunta a outro grupo de pessoas no qual haviam infiltrado colaboradores que respondiam propositalmente errado. A maioria das respostas foi errada.
Não é grande novidade. Homem é animal de rebanho.
O rei saiu nu do palácio, afirmando que estava vestido com um lindo manto dourado. Só os mentirosos não poderiam ver. Todos viram que o rei estava nu, com as partes expostas. Apenas um súdito, angustiado pela dúvida, gritou: “O rei está nu!?”. Não foi por amor à verdade. Gritou pelo desespero de não poder confiar nos próprios olhos.
Esse é o problema -onde está a verdade? Nos seus olhos ou nos olhos dos outros?
A estratégia econômica do governo se baseou no diagnóstico vencedor em muitos países do mundo:
a) o governo está quebrado por causa dos gastos sociais, subsídios agrícolas e regionais e pelos gastos da Previdência. O Estado de bem-estar social está falido;
b) a Previdência Social é inviável porque os benefícios são independentes da contribuição, o brasileiro se aposenta muito cedo, a população está ficando mais velha. A reforma é urgente. Alguns economistas até propuseram que se esquecesse dessa “história de direito adquirido” no caso de aposentadorias;
c) as empresas estatais têm déficit.
É o diagnóstico dos Estados Unidos, da Inglaterra e do Consenso de Washington.
A contabilidade do Banco Central não revela nada disso, conforme mostra a tabela desta página.
Durante todo o período, o governo arrecadou mais impostos do que precisava para pagar todas as despesas, incluindo a Previdência. Só faltava dinheiro para pagar os juros, que eram mantidos altos sob a alegação de que o déficit era alto. Mas antes dos juros só havia superávit.
Manteve os juros altos para atrair dólares e deixar o dólar sobrevalorizado.
Quando o Plano Real começou, a dívida interna do governo federal era de US$ 60 bilhões.
Com a queda da inflação a partir do Plano Real, a dívida diminuiria ainda mais. Em geral, quando a inflação cai, caem os juros nominais e o público troca dívida por moeda corrente. O governo poderia trocar dívida por moeda sem criar problemas inflacionários.
Nada disso aconteceu. Os juros nominais e os juros reais foram mantidos bem altos. O governo não gastou mais do que arrecadou, incluindo a Previdência. Mesmo assim, a dívida interna cresceu US$ 240 bilhões, chegando a US$ 300 bilhões no final de 1998. A única razão para a dívida crescer foram os juros altos.
Enquanto isso o governo usou todo o apoio político que tinha para aprovar reformas sob a hipótese de que o Estado estava quebrado: o funcionário público passou a ser demissível, as estatais foram privatizadas e tentou-se reformar a Previdência, tributando aposentados do setor público e do setor privado.
Neste ano, o governo tem novamente superávit primário e maior do que no ano passado.
Na semana passada, o Ministério da Previdência anunciou oficialmente que tem um déficit de apenas R$ 10 bilhões. E que a Previdência deixa de arrecadar R$ 7 bilhões, todos os anos, por causa da renúncia fiscal, isto é, por meio de isenções dadas a instituições filantrópicas, segurados especiais, empregados domésticos etc.
Ou seja, o déficit da Previdência é pequeno e se reduz rapidamente quando a economia cresce, com combate à sonegação, redução de isenções e se o governo deixasse de ficar falando que a Previdência está quebrada e tem que ser reformada, o que, sem dúvida, aumenta a sonegação. A precária Previdência brasileira tem problemas, mas muito menores do que os problemas das excelentes previdências francesa, alemã, inglesa ou japonesa, que, diga-se de passagem, não foram reformadas.
Finalmente, as estatais produziram um superávit. Fácil de entender: subiu o preço do petróleo, aumenta o lucro e o caixa da Petrobras.
O déficit das antigas estatais mais importantes era simplesmente o financiamento novo que tomavam para investir. Déficit é definido como dívida nova.
Déficit não é prejuízo, desperdício ou descontrole. É simplesmente empréstimo novo. Agora as teles ou a CSN podem tomar empréstimos, pois será déficit privado, e não público. Não me perguntem por que o déficit público é ruim e o privado é bonzinho pois também não sei.
O déficit público também se transformou em superávit nos Estados Unidos e na França como resultado do crescimento.
Indiferentes, muitos economistas continuam usando como fecho dos seus artigos a importância do ajuste fiscal. Alguns ainda mencionam a urgência da reforma da Previdência.
Portanto passamos quatro anos usando diagnósticos que talvez sejam bons para outros países, mas não combinam com os dados do Brasil. Pode ser que seja mentira lá também.
O rei não está nu. Está apenas fantasiado de baiana ou marinheiro.
João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de “Que País é Este?” (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna. E-mail – jsayad@ibm.net
fonte: AFUBESP