LEIA ARTIGO DE FÁBIO KONDER COMPARATO SOBRE A MP 1984, A CHAMADA MP DO BANESPA
A medida provisória 1.984 foi feita pelo governo para
garanti-lo contra o exercício de direitos pelo povo
(Artigo publicado na edição de hoje, página A3 do jornal Folha de S. Paulo)
No romance com o mesmo título, George Orwell imaginou que o reino do absurdo, representado pelo Estado totalitário, seria um fato extraordinário na história. Pobre visionário! Mal podia ele supor que, no final do século, a técnica do absurdo seria banalizada no expediente do dia-a-dia burocrático.
Na Oceania tenebrosa de Orwell, todos os sinais haviam sido trocados e as palavras significavam exatamente o contrário do que sempre se entendera. O Ministério da Verdade ocupava-se de reescrever o passado, segundo a conjuntura política do momento; o Ministério da Paz administrava a guerra; o do Amor chefiava a polícia; e o da Abundância dirigia o racionamento.
Hoje já não precisamos recorrer à imaginação para descrever o absurdo. Aqui mesmo, talvez pela fatalidade da numeração oficial, a medida provisória 1.984, cuja 18ª edição saiu no “Diário Oficial” de 2/6, fornece um bom exemplo da institucionalização do equívoco semântico como técnica de governo.
No Estado de Direito, a lei é votada pelo povo ou seus representantes legítimos e não pode ser feita pelo governo, porque ela é justamente uma garantia do povo contra o arbítrio dos governantes. Mas a medida provisória 1.984 foi feita pelo governo exatamente para garanti-lo contra o exercício de direitos pelo povo.
Desde os remotos tempos da Grécia clássica, a lei sempre foi entendida, em contraposição ao decreto, como uma norma de caráter geral e impessoal, inaplicável para a solução de casos particulares. Mas a medida provisória 1.984 acaba de ser modificada “ad hoc”, para resolver o caso do Banespa.
O Poder Judiciário do Estado moderno tem por função principal proteger o povo contra os atos inconstitucionais e ilegais dos governantes. Mas a medida provisória 1.984, baixada pelo chefe do Executivo, restringe o poder judicial de anular ou suspender os efeitos de atos do próprio Executivo, que a editou.
Os recursos judiciais não podem anular os efeitos já produzidos das decisões recorridas. Mas a medida provisória 1.984, em sua última versão, revista e piorada, permite que, em grau de recurso, o presidente do Tribunal anule retroativamente os efeitos já produzidos da decisão recorrida.
A ação civil pública foi criada entre nós para facilitar a proteção de direitos que não podem, razoavelmente, ser defendidos por iniciativa individual. Mas a medida provisória 1.984, na reedição de 2/6, proíbe a utilização dessa ação “para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”.
Quem tem o mais superficial conhecimento da realidade brasileira sabe que isso significa deixar milhões de cidadãos sem condições de fazer valer individualmente seus direitos em juízo.
Na Oceania de Orwell, Big Brother decide inventar uma língua nova, a novilíngua, de modo a tornar “literalmente impossível o crime de pensamento, pois já não haverá palavras para exprimi-lo”. Em nossa Oceania tropical, o governo não precisa chegar a esses extremos inventivos: basta pedir ao dr. Gilmar Ferreira Mendes que use os velhos e consagrados termos técnicos do direito com inversão de sentido. A experiência indica que os tribunais superiores saberão ler, no artigo 1º, parágrafo único da Constituição, que “todo poder emana do governo, que o exerce por meio de medidas provisórias”.
O que surpreende e choca nesse grotesco episódio de legislação executiva em causa própria não é a reiteração do abuso. Quanto a isso, infelizmente, já estamos todos calejados. O que realmente dói é ler, abaixo do texto desse estrupício normativo denominado medida provisória 1.984, o nome honrado do atual ministro da Justiça, cuja dedicação à causa da democracia e dos direitos humanos nunca foi posta em dúvida.
Fábio Konder Comparato, 63, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França), é professor titular da Faculdade de Direito da USP, fundador e diretor da Escola de Governo e autor, entre outros livros, de “A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos” (Saraiva).
fonte: AFUBESP