Entrevista: Lia Diskin, da Rede Gandhi, diz por que defende o SIM no referendo
Com objetivo de ampliar o debate sobre a questão do desarmamento, entrevistamos Lia Diskin, uma ardorosa defensora do SIM no referendo que será realizado no próximo dia 23 de outubro. Co-fundadora da Rede Gandhi e da Palas Athena Centro de Estudos Filosóficos, ela relaciona os motivos pelos quais a venda de armas e munições deve ser proibida, afirma que o legado de Gandhi poderia ser muito útil ao Brasil e cita duas das frases mais contundentes do líder indiano: “A violência é a arma dos covardes” e “A verdadeira democracia só pode resultar da não-violência”.
Veja abaixo, a íntegra da entrevista com Lia Diskin:
Afubesp online: Quais os motivos que a levam a apoiar a proibição da venda de armas e munições no Brasil?
Lia Diskin: Os resultados das pesquisas realizadas em todo o país revelam que as mortes provocadas por armas de fogo são alarmantes. No ano passado houve 38 mil vítimas – o que representa uma pessoa a cada 15 minutos –, sendo a sua grande maioria constituída de jovens entre 14 e 25 anos. Um dado revelador e pontual mostra que essas mortes não foram provocadas apenas por enfrentamentos de gangues ou por criminosos: na região Sul da cidade de São Paulo, em 46% dos homicídios havia relacionamento familiar ou de amizade entre a vítima e o agressor. Isso significa que o argumento – repetido uma e outra vez pelos lobbies da indústria de armas – de que é um direito do cidadão ter uma arma para defender sua família, é totalmente falso. Outra fonte de pesquisa, realizada pela DATASUS, indica que diariamente duas crianças brasileiras são feridas por armas de fogo em casa ou nos arredores da mesma. Grande parte dos homicídios é provocada por brigas entre vizinhos, nos bares, no trânsito e dentro de casa. O álcool e as drogas agravam a situação, desagregando os vínculos familiares. Nestes casos, quando há uma arma em posse de um dos membros da família, ela se torna objeto constante de ameaça, coerção e abuso de poder, sobretudo contra mulheres e crianças.
Algumas pesquisas indicam que a maioria dos brasileiros é contra o comércio de armas. Elas traduzem a realidade?
Penso que sim. Todas as semanas deparamos com notícias sobre tragédias provocadas por armas de fogo. Muitas delas envolvem namorados ou casais que se desentendem e, num momento de raiva ou ciúme, cometem uma besteira. Essas notícias reiteradas, com poucas variantes, vão criando um clima de tensão crescente, no qual percebemos de maneira clara que todos estamos expostos a situações semelhantes. A vida urbana é estressante e, com uma arma na mão, todos podemos tornar-nos, conforme as circunstâncias, em vítimas ou assassinos.
Faltam apenas dois meses para o referendo. Como fazer chegar esse debate (sobre a venda de armas) na periferia das grandes cidades ou nos grotões do país?
Esta é uma questão que deve ser discutida em todos os setores da sociedade: nas escolas, sindicatos, igrejas, dentro das empresas e nos próprios lares. A mídia está abrindo espaços para a reflexão, mas ainda não na medida do necessário. Iniciativas como a do Jornal da Afubesp são muito bem-vindas, e esperamos que incentive outros meios de comunicação.
Existem pessoas que consideram o referendo inconstitucional, sob o argumento de que o Estado não pode interferir no direito de autodefesa do cidadão. Como se contrapor a essa visão?
Primeiro é necessário esclarecer que o objetivo do Estatuto do Desarmamento não é desarmar os criminosos. Essa é uma função da polícia. Não podemos ser ingênuos nem iludir a população. Temos que disponibilizar informações e estudos que permitam às pessoas tirarem suas próprias conclusões. Esses estudos revelam que a presença de uma arma em casa é mais um fator de risco do que de proteção: uma pessoa com arma em casa tem 57% mais chances de ser assassinada do que aquela que está desarmada, com o agravante de que o assassino termina por apropriar-se da arma que supostamente tinha o objetivo de proteger.
É bom lembrar que o Estatuto do Desarmamento foi aprovado em dezembro de 2003, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, com 53 votos a favor e 4 contra. E que o projeto de Decreto Legislativo tramitou no Congresso por mais de um ano. Portanto, o argumento de inconstitucionalidade não se sustenta.
Outros dizem que a vitória do sim não reduzirá a violência, nem o número de mortes por armas de fogo, e ainda estimulará o contrabando de armas. Esses são argumentos válidos?
Não. Sobre a redução da violência, na Folha online de 2 de setembro foi publicada uma pesquisa do Ministério da Saúde muito alentadora: o índice nacional de mortos por armas de fogo caiu 8,2% no ano passado em comparação com 2003, o que representa 3.234 vidas poupadas: efeito da campanha do desarmamento e do recolhimento de armas, revelado pelo cruzamento de dados realizado pela Secretaria de Vigilância da Saúde. O estado de São Paulo mostrou uma redução significativa nos índices: 1.960 mortes a menos.
Qual ou quais os ensinamentos de Mahatma Gandhi que poderiam ser aplicados à realidade brasileira para se reduzir a violência?
O legado de Gandhi ainda não foi motivo de estudos sérios e consistentes por parte da sociedade brasileira. Temos uma imagem muito santificada, idealizada e distante do contexto histórico que ele teve que enfrentar. Entretanto, a contribuição que sua experiência pode oferecer-nos é imensa. Sua afirmação de que “a violência é a arma dos covardes” não deixa dúvidas sobre o caráter assertivo, vigoroso e ativo que um pacifista precisa ter. O compromisso com a não-violência exige uma atitude democrática em todas as relações, tanto as familiares como as profissionais e as de cidadania. Desse modo, antes de combater a injustiça e, por decorrência, a violência, temos que distinguir entre o agressor e a agressão, e jamais distanciar os meios dos fins desejados. Quer dizer: se temos de combater a violência, não podemos usar o mesmo instrumento que julgamos injusto, nocivo e covarde. A repressão é insuficiente e, a longo prazo, ineficiente. Temos que investir em programas de prevenção, educação e redes de solidariedade. Tais programas reduzem a desigualdade social, criam ambientes urbanos saudáveis, oferecem oportunidades de desenvolvimento para todos e promovem convívio confiável.
Gandhi vai mais longe ainda, ele afirma que “a verdadeira democracia só pode resultar da não-violência”.
No início de outubro acontece a Semana Gandhi. Você poderia resumir os objetivos desse evento?
A Associação Palas Athena há 24 anos realiza na 1ª semana de outubro atividades sócio-educativas em torno da vida e obra de Gandhi. Neste ano estarão participando quatro estados, 23 cidades e 36 locais, com ações que vão de palestras, concertos, documentários, filmes comentados e peças teatrais a jogos cooperativos, atividades lúdicas para crianças e concursos de redação. Estes últimos, focados na mensagem gandhiana, envolverão 14.000 alunos da rede pública de ensino dos municípios de Curitiba, Itatiba, Araçatuba e Birigui. A programação completa está disponível no site www.palasathena.org..
Os objetivos são familiarizar o povo brasileiro com o repertório de idéias e experiências vividas por Gandhi, e igualmente outros promotores da não-violência, como Martin Luther K
fonte: Airton Goes – Afubesp