20 ANOS DA LEI DA ANISTIA
A história reservou para o Dia dos bancários, 28 de agosto, outra comemoração. Há 20 anos, no dia 28 de agosto de 79, o general João Batista Figueiredo promulgou a Lei da Anistia, cedendo a um vigoroso movimento nacional por anistia ampla, geral e irrestrita. Tímida no começo da década de 70, a luta pela anistia atingiu seu ápice em 78/79 com a constituição dos Comitês Brasileiros da Anistia, que exigiam justiça para as vítimas do autoritarismo.
Hoje, continua a luta pela responsabilização do Estado nos assassinatos cometidos durante o regime militar, apuração dos culpados, defesa dos direitos humanos, num esforço ininterrupto para que não prevaleça a impunidade para torturadores e criminosos da ditadura.
Com o título 20 anos: Anistia não é esquecimento, a Fundação Perseu Abramo agrupou em sua home page ( www.fpabramo.org.br ) um farto material que resgata o histórico desse movimento.
Os organizadores do material justificam a escolha do título, lembrando que ela faz jus à concepção de anistia que permeou a campanha e que continua a nortear a atuação dos seus militantes. “A tônica dos pronunciamentos e dos panfletos da campanha sempre foi a denúncia dos crimes da ditadura, exigindo o esclarecimento das mortes e dos ‘desaparecimentos’, com a devida responsabilização dos culpados; a total reintegração na vida nacional dos que foram dela alijados por medidas arbitrárias; e a reconquista dos valores democráticos – a liberdade, a justiça social e o respeito aos direitos humanos – que haviam sido proscritos pelas Leis de Exceção.”
Textos, panfletos, documentos de congressos e encontros, manifestos, mais de 50 relatos pessoais e um registro iconográfico estão disponíveis para que os interessados possam conhecer, estudar, analisar, relembrar um momento importante da luta contra a ditadura militar e pelos direitos humanos.
A seguir, um texto belíssimo do poeta Drummond, extraído da home page da fundação, publicado dois meses antes da promulgação da Lei da Anistia.
ANISTIA
COMO VENS, COMO TE IMAGINAVA
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 28 de junho de 1979
Anistia, teu nome é perdão. Mas como perdoar a quem não cometeu falta ou delito, e, não os cometendo, foi castigado? Se teu nome é perdão, deve este ser pedido às vítimas da injustiça e o arbítrio? Em vez de compaixão, neste caso, a anistia precisava ser um ato de arrependimento seguido de reconhecimento público e proclamação da injustiça. O perdão cabe ao ofendido. E há muitos ofendidos e humilhados que, sem culpa, tiveram de pagar pelo crime que não perpetraram.
Anistia teu outro nome é esquecimento. É fácil esquecer. Quase não fazemos outra coisa todos os dias. Esquecemos a hora, o compromisso, o encontro trivial, a pequena obrigação, o pequeno prazer e a pequena dor. Nossa vida é um tecido de esquecimentos, sabiamente preparado pela memória, que não teria capacidade de expor e ruminar os milhões de atos e tentativas de atos, pensamentos, sentimentos e sensações que compõem um dia na Terra. E são milhares de dias sob esse depósito de acontecimentos e fantasmas de acontecimentos que nos cercam e nos penetram. Se fôssemos guardá-los todos, que seria de nossa vida e nosso tempo? Eliminá-los pelo santo esquecimento, bálsamos de Deus ao mundo, pois não só anula o insignificante como tonifica a alma. Entretanto, tudo se pode, se deve e convém esquecer, quando é santo esquecer.
Se a anistia é um processo de esquecimento, que será da História? E que será dos esquecidos, se eles mereciam ser lembrados, vivos ou mortos que estejam, por que a injustiça os marcou? Vamos esquecer os infratores da lei geral, se isto ajuda a normalidade política, e se essa lei merecia mesmo ser respeitada, pois há leis tão desprovidas do espírito legal que não se dão ao respeito. Mas, e aqueles que nem isso fizeram, aqueles que não infringiram lei alguma, justa ou absurda, esses merecem perdão ou reparação total?
Anistia, começo a não compreender teu sentido. Vens com um ramo de oliveira na mão direita, mas ocultas na outra algo parecido com uma vergasta. Perdoas a quem não precisava ser perdoado mas exaltado, em vez de te curvares diante dele, porque sofreu punição iníqua, já é estranho perdão. E distinguir entre os que devam ser perdoados, para excluir os que faziam jus a perdão, pois não são criminosos comuns, soltos pela cidade, incapturáveis e impunes; excluí-los do perdão que justamente lhes é aplicável, isto eu não entendo.
Anistia, vens pela metade ou por dois terços? Consideras-te ampla e estreitas as dobras da tua veste? Absorveste mal o significado da palavra perdão, omites a profundidade da palavra esquecimento? Discriminas onde a razão, a filosofia e a ciência política se eximem de fazê-lo?
Ou vens tímida, precavida, no cálculo (ou na esperança) de que mais tarde se corrigirão os erros que deliberadamente cometes, restringindo-te a ti mesma em teu poder absoluto? Guardas para o futuro uma segunda edição de teu espírito, amplo por natureza? Estabeleces o crediário em matéria de justiça, de magnanimidade e visão política? Tens disfarçado no colo um conta-gotas, ou soletras à noite um manual de casuística, para aplicar à urgente realidade brasileira a Summa de Casibus Penitentialibus?
Demoraste tanto a vir, e pareces hesitar ainda na etapa final do caminho. Consultas papéis e mais papéis, como se no papel, e não no espírito que em todos os tempos te inspirou, estivesse a indicação precisa do teu roteiro. Um só papel e umas poucas linhas te bastam. Esquecimento e perdão (já que não haverá pedido de perdão a muitos dentre os perdoados) não ocupam espaço excessivo na página. Ou preferes fazer maior consumo de palavras, se estas, e só estas, bastam?
Julgas-te sábia, se limitas o raio da tua sabedoria? Tens-te por generosa, estabelecendo condições para tua generosidade? Sabes que podias ser perfeita, e a perfeição não te apraz?
A conveniência política poderá acolher-te com aplausos, considerando-te a melhor que se poderia almejar no momento, e nesse caso colam a etiqueta de provisória ou mais ou menos. Mas eu queria ver-te resplandecente em tua pureza e integridade. Queria aplaudir-te na generalidade e profundidade de teu conteúdo clássico. Uma bela idéia há de manifestar-se sem remendos ou ranhuras. Não podes trazer uma pereba na perna venusina. Vem completa, vem de túnica imaculada, vem nua, anistia. E, nua, não darás margem a murmurações e recriminações, protestos, ressentimentos, vociferações e lágrimas. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça (como, e com que ridículo, anistiar um Juscelino, um Lacerda?). Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa.
fonte: AFUBESP